Parte I: Causas primárias – Capítulo III: Criação das coisas – Observações e concordâncias bíblicas sobre a criação
Observações e concordâncias bíblicas sobre a criação [1]
59. | De acordo com o nível de conhecimento de cada povo, os povos tem criado idéias muito diferentes sobre a criação. A ciência permitiu que o raciocínio percebesse como algumas daquelas idéias seriam impossíveis. A idéia (sobre a criação) que os Espíritos apresentam confirma a opinião que é comum entre os homens mais esclarecidos (instruídos).
A objeção que poderia ser feita à ideia dos Espíritos sobre a criação é de que aquela idéia dos Espíritos contradiz o texto dos livros sagrados. Mas um exame sério mostrará que a contradição é apenas na aparência e não existe realmente; a contradição aparente é causada pelo entendimento das passagens dos textos sagrados que tem um sentido apenas simbólico (e que não devem ser tomadas ao pé da letra).
Ao longo do tempo as crenças religiosas (e os textos sagrados) tiveram que se modificar sobre muitas questões. Por exemplo, houve uma época em que o movimento da Terra em torno do Sol esteve em contradição com os textos sagrados [2], e a idéia de que a Terra girava em torno do Sol deu motivo para toda espécie de perseguições (religiosas); mesmo assim, com ou sem condenações (da Igreja), a Terra gira em torno do Sol e hoje ninguém pode dizer o contrário sem correr o risco de por em dúvida a saúde mental. Outra idéia que precisa ser revista nos textos sagrados é a questão de Adão, tido como sendo a origem exclusiva da humanidade.
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A Bíblia também diz que o mundo foi criado em seis dias, e declara que a época da criação da Terra foi há 4.000 anos (mais ou menos) antes da era cristã. A Bíblia diz que a Terra não existia, foi tirada no nada: o texto bíblico não dá margem para dúvidas. Mas, aí surge a ciência que – sem dó nem piedade – prova o contrário. A história da formação do planeta está registrada de forma permanente no mundo dos fósseis. Está provado que os seis dias da criação (citados na Bíblia) descrevem vários períodos de formação do planeta, cada um durando (talvez) muitas centenas de milhares de anos. Isso não é uma teoria (para explicar a formação do planeta), não é uma doutrina, não é uma opinião isolada. É um fato concreto que é tão certo como é certo o movimento da Terra em torno do Sol (e que a teologia não pode deixar de reconhecer); esse é o risco que existe quando as expressões de uma linguagem simbólica (como a linguagem da Bíblia) são entendidas ao pé de letra. Isso quer dizer que a Bíblia está errada? Não. A conclusão é que os homens se enganaram ao entender os textos bíblicos.
A ciência buscou entre as pistas que o próprio planeta fornece e descobriu a ordem em que os seres vivos apareceram na Terra; essa ordem descoberta pela ciência está de acordo com o que diz a Gênese. A diferença está no tempo de duração dos acontecimentos. A Gênese diz que o aparecimento dos seres vivos na Terra foi um milagre executado por Deus em algumas horas; a ciência diz que o aparecimento dos seres vivos na Terra aconteceu pela vontade Deus e seguindo a lei das forças da natureza, mas durou alguns milhões de anos. Deus seria menor, menos poderoso, por causa disso? A obra de Deus é menos sublime apenas porque não foi instantânea? É claro que não. Apenas uma idéia bem mesquinha sobre a Divindade não iria reconhecer a onipotência (da Divindade) que está presente nas leis eternas que a Divindade estabeleceu para a administração dos mundos. A ciência, longe de fazer pouco da obra divina (que foi realizada respeitando as leis da natureza), mostra a obra divina com um aspecto mais grandioso e mais em acordo com as noções que temos do poder e da majestade de Deus.
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A ciência concorda com Moisés ao afirmar que o homem foi criado por último na ordem da criação dos seres vivos. Moisés, porém, afirma que o povoamento da Terra teria sido iniciado após o dilúvio universal [3] (o dilúvio universal aconteceu no ano 1.654 da formação do mundo [4] (sic), aproximadamente 2.346 anos antes do Cristo).
A geologia diz que o homem ("Adão") apareceu na Terra depois de uma grande catástrofe (geológica) pois a ciência ainda não encontrou em camadas geológicas mais antigas nenhum sinal (físico) da presença do homem no planeta (ou de animais da mesma categoria do homem). Mas isso não quer dizer que a presença do homem no planeta antes daquela grande catástrofe seja impossível. Muitas descobertas já fizeram surgir dúvidas sobre isso. De um momento para outro pode surgir a certeza comprovada de que a presença de homem no planeta é mais antiga do que se pensava, e será necessário reconhecer que o texto bíblico é figurativo (simbólico) também na questão do aparecimento do homem no planeta (assim como o texto bíblico é simbólico em outras questões).
A questão (agora) é saber se aquela grande catástrofe (geológica) e o dilúvio universal vivido por Noé são a mesma coisa. Ora, o tempo que é necessário para a formação de camadas (geológicas) fósseis torna impossível confundir aqueles dois acontecimentos (pois as camadas fósseis mostram que a grande catástrofe ocorreu antes do dilúvio universal). Se forem encontrados sinais da presença do homem no planeta antes daquela grande catástrofe, então ficará provado ou que Adão não foi o primeiro homem a habitar o planeta ou que o momento em que Adão surgiu no planeta é um mistério escondido pelo tempo. Contra fatos não há argumentos: se essas evidências forem encontradas, não existirá outro jeito senão aceitar as evidências assim como foram aceitos os fatos sobre o movimento da Terra e sobre os seis períodos (geológicos) da criação.
Concordamos que a idéia da existência do homem no planeta antes do dilúvio (geológico) ainda é uma suposição (não foi provada pela ciência). Porém, há fatos que não são suposição. Se imaginamos que o homem tenha aparecido pela primeira vez na Terra por volta de 4.000 anos antes do Cristo, e que toda a raça humana (com exceção de uma só família) foi destruída (pelo dilúvio universal) 1.650 anos mais tarde, então o povoamento da Terra teria começado com Noé, 2.350 anos antes do Cristo. Ora, quando os hebreus emigraram para o Egito no décimo oitavo século (por volta de 1.700 anos antes do Cristo), os hebreus encontraram o Egito muito povoado e com uma civilização já bastante adiantada. A história prova que nessa mesma época as Índias e outros países também estavam em pleno desenvolvimento. Sem levar em conta as datas dos acontecimento históricos desses povos (datas que incluem épocas que são anteriores ao dilúvio universal), o povoamento e o desenvolvimento daqueles países teria que ter acontecido em 600 anos (desde o início do povoamento da Terra depois do dilúvio universal), no espaço de tempo entre o vigésimo quarto século e o décimo oitavo século (antes do Cristo). Nesse caso a descendência de um único homem (restante depois do dilúvio universal) teria podido – nesse curto espaço de 600 anos – povoar todos os países então conhecidos (supondo-se que os países não conhecidos não tivessem um habitante sequer); nesse caso, também, (durante aqueles 600 anos) a espécie humana teria conseguido sair da ignorância absoluta do estado primitivo e teria conseguido chegar ao mais alto grau de desenvolvimento intelectual (o que é contrário a todas as leis antropológicas).
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A diversidade das raças (também) reforça a idéia de que a presença do homem no planeta teve início antes da época indicada por Moisés. Com certeza o clima e os costumes causam modificações no caráter físico dos seres; entretanto, existe um limite (até certo ponto conhecido) para as modificações que o clima e os costumes podem causar no caráter físico dos seres. O exame das funções orgânicas dos organismos mostra que entre as várias raças humanas há diferenças grandes na formação dos corpos (humanos), diferenças que vão além das modificações que o clima (por exemplo) poderia causar.
O cruzamento de raças faz surgir tipos intermediários (misturados) de seres. O cruzamento de raças costuma eliminar os tipos extremos (por exemplo, pessoas muito altas, ou muito baixas), mas o cruzamento de raças não causa a criação de tipos extremos [5] (apenas produz variações). Ora, se houve cruzamento de raças então certamente havia raças diferentes para se cruzarem. Mas como explicar a existência de raças diferentes (na época em que os hebreus foram para o Egito) se todas teriam tido uma origem comum e – ainda mais – uma origem tão pouco antiga. Como é possível aceitar a idéia de que em alguns poucos séculos (600 anos) alguns descendentes de Noé tenham (fisicamente) se transformado tanto que acabaram dando origem à raça etíope (por exemplo)? Aceitar essa idéia seria a mesma coisa que aceitar a idéia de que o lobo e a ovelha (ou o elefante e o pulgão, ou o pássaro e o peixe) são descendentes de um mesmo animal apenas um pouco mais antigo.
Novamente, contra fatos não há argumentos. Tudo fica explicado e faz sentido se for aceita a idéia de que a existência do homem (no planeta) é mais antiga do que normalmente se pensa; se for aceita a idéia que o homem não teve uma origem única (Adão); se for aceita a idéia de que Adão vivia (há 6.000 anos) em uma região ainda desabitada, e que foi Adão quem iniciou o povoamento daquela região; se for a aceita a idéia de que o dilúvio de Noé foi uma catástrofe que aconteceu em uma região do planeta, mas que foi confundida com uma catástrofe geológica atingindo todo o planeta; se for aceita a idéia de que os textos sagrados (de todos os povos) usam uma linguagem simbólica (típica de estilos orientais).
Isso mostra que é sensato ter cuidado antes de chamar de falsas as doutrinas (espíritas) que cedo ou tarde podem acabar desmentindo quem afirmou que elas (doutrinas) seriam falsas (como já aconteceu com outras doutrinas no passado).
As idéias religiosas só tem a ganhar (e se engrandecerem) se caminharem lado a lado com a ciência. Essa parceria entre religião e ciência é a única forma que a religião tem de não criar oportunidades para que ela (religião) seja desacreditada. |
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[1] Essas observações de Allan Kardec podem parecer bastante confusas, mas não parecem tão confusas se não for esquecido: (1) que o objetivo dessas observações é mostrar que os ensinamentos dos Espíritos não bate de frente com os textos bíblicos; (2) que os textos bíblicos vem sendo interpretados de forma errada quando são entendidos ao pé da letra, ao invés de serem entendidos como uma descrição simbólica (que de fato são) da criação da Terra e da espécie humana.
[2] Por causa do texto de passagens bíblicas, a Igreja Católica defendeu durante mais do que 1.400 anos que a Terra seria o centro do sistema solar, com todos os planetas (do sistema solar) girando em torno da Terra.
[3] Este trecho do Livro dos Espíritos é bastante confuso porque parece que "povoamento da Terra" e "aparecimento do homem na Terra" são tratados como sinônimos. De um ponto de vista lógico essas expressões deveriam ser sinônimos porque o povoamento da Terra só seria possível a partir do aparecimento do homem na Terra. Mas o dilúvio universal muda isso: o homem teria aparecido na Terra antes do dilúvio universal, mas o povoamento da Terra (de fato) só teria sido iniciado depois do dilúvio universal.
[4] Sic Erat Scriptum: traduzido como "assim estava escrito". Novamente parece que existe outra confusão neste trecho do Livro dos Espíritos pois a expressão "formação do mundo" é usada como sinônimo de "criação da espécie humana"; com certeza a formação do mundo não teria sido iniciada há apenas 2,350 anos antes do Cristo.
[5] As leis naturais do cruzamento de raças (de seres vivos em geral) trabalham para "igualar pela média" as raças que se cruzam, Os tipos extremos presentes em uma raça são criados dentro da própria raça de seres, e costumam desaparecer quando a raça se mistura à uma outra raça.
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