Parte III: Leis morais – Capítulo I: Lei divina ou natural – O bem e o mal
O bem e o mal
629. | A moral pode ser definida de que forma? | |
| – | A moral é a regra de bem proceder (agir), isto é, a moral é a distinção entre o bem e o mal. A moral se baseia na observância (obediência) da lei de Deus. O homem procede bem quando tudo o que o homem faz tem todos em vista, e quando tudo o que o homem faz é pelo bem de todos; o homem procede bem porque – então – o homem está cumprindo (obedecendo) a lei de Deus. |
630. | Como o bem e o mal podem ser distinguidos (um do outro)? | |
| – | O bem é tudo que está de acordo com a lei de Deus. O mal é tudo que vai contra a lei de Deus. Assim, fazer o bem significa proceder (agir) de acordo com a lei de Deus, e fazer o mal significa infringir (desrespeitar) a lei de Deus. |
631. | O homem tem meios (condições) de distinguir por si mesmo aquilo que é bem daquilo que é mal? | |
| – | Sim, quando o homem acredita em Deus, e quando o homem quer saber (conhecer) aquela diferença. Deus deu a inteligência para o homem usar para distinguir o bem do mal. |
632. | Já que o homem está sujeito ao erro, o homem não pode vir a se enganar na compreensão daquilo que seja bem e daquilo que seja mal, e – assim – acabar praticando o mal enquanto o homem acredita (pensa) que está de fato praticando o mal? | |
| – | Jesus disse: "vede o que quereríeis que vos fizessem ou não vos fizessem" [1]. Isso resume tudo. Não há forma como o homem possa se enganar (se o homem seguir essa regra). |
633. | Essa regra do bem e do mal – que poderia ser chamada de "regra de reciprocidade" ou de "regra de solidariedade" – não pode ser aplicada (usada) à forma como o homem procede (age) consigo mesmo. O homem pode achar (encontrar) na lei natural uma regra (e um guia seguro) de bem e de mal para o homem proceder consigo mesmo? | |
| – | Quando o homem come em excesso, o homem percebe que isso faz mal a ele mesmo. Pois bem: é Deus que deu ao homem a medida daquilo que o homem necessita. Quando o homem ultrapassa aquela medida que Deus deu para o homem, o homem é punido (sofre as consequências). Em tudo é assim.
A lei natural traça (define) para o homem o limite das necessidades do homem. Se o homem vai além daquele limite, o homem é punido com um sofrimento (sofre as consequências). Se o homem sempre ouvisse a voz que diz "basta" para o homem, o homem evitaria a maior parte dos males que o homem diz ser culpa da natureza. |
634. | Por que o mal está na natureza das coisas? Quer dizer, o mal moral. Deus não poderia ter criado a humanidade em condições melhores? | |
| – | Já foi dito que os Espíritos foram criados simples e ignorantes [2]. Deus deixa que o homem escolha o caminho que o homem quer seguir. Tanto pior para o homem se o homem toma o mau caminho: a peregrinação (estrada) desse homem será mais longa.
Se as montanhas não existissem, o homem não iria compreender que é possível subir, e que é possível descer. Se as rochas não existissem, o homem não iria compreender que há corpos duros. É preciso que o Espírito ganhe experiência, e para que o Espírito ganhe experiência é preciso que o Espírito conheça o bem e o mal. E é por isso (também) que existe a união do Espírito com o corpo [3]. |
635. | Das diferentes posições sociais dos homens nascem necessidades novas que não são iguais para todos os homens. Não parece que isso leva à conclusão de que a lei natural não é uma regra uniforme (igual) para todos os homens? | |||
| – | Essas diferentes posições sociais dos homens são parte da natureza das coisas, e estão de acordo com a lei do progresso. Isso não abala (altera) a unidade da lei natural, que se aplica a tudo. [4] | ||
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As condições de existência (física) do homem mudam de acordo com os tempos e de acordo com os lugares. Daí nascem necessidades diferentes e posições sociais que são apropriadas para aquelas necessidades.
Essa diversidade (de condições, de necessidades, e de posições sociais) está na ordem (natural) das coisas e está de acordo com a lei de Deus; a lei de Deus não deixa de ter unidade (ser uma só) no que diz respeito ao princípio (essência) daquela lei.
Cabe à razão (raciocínio) dos homens dizer a diferença entre as necessidades reais e as necessidades fictícias (inventadas) ou ditadas por convenções (sociais). |
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636. | O bem e o mal são absolutos (os mesmos) para todos os homens? [5] | |
| – | A lei de Deus é a mesma para todos. Porém, o mal depende principalmente da vontade (intenção) que o homem tenha de praticar o mal [6]. O bem é sempre o bem, e o mal é sempre o mal, qualquer que seja a posição do homem. Só existe diferença no grau da responsabilidade do homem (pelo bem, ou pelo mal praticado). |
637. | O selvagem que cede aos seus instintos e se alimenta de carne humana é culpado? | |||
| – | Foi dito que o mal depende da vontade (intenção). Pois bem: quanto melhor o homem sabe o que o homem faz, tanto mais culpado o homem é. | ||
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A gravidade (seriedade) do bem e do mal (praticado pelo homem) é relativa e depende das circunstâncias em que o bem, ou o mal, foi praticado.
Muitas das faltas (erros) condenáveis que o homem comete não são menos condenáveis apenas porque aquelas faltas (erros) são uma consequência da posição em que a sociedade colocou aquele homem.
Mas a responsabilidade do homem (pelo bem, ou pelo mal, que foi praticado pelo homem) é proporcional (varia de acordo) aos meios (condições) que o homem tem para compreender o bem e o mal.
Assim, um homem esclarecido que pratica uma simples injustiça é mais culpado aos olhos de Deus do que um selvagem ignorante que se entrega aos seus instintos. |
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638. | Parece que às vezes o mal é uma consequência da força das coisas (circunstâncias) [7]. A necessidade em que o homem se encontra de destruir (matar) até mesmo o seu semelhante [8], por exemplo, é – em alguns casos – uma consequência da força das coisas (circunstâncias). Pode ser dito – então – que nesses casos (também) existe infração (desrespeito) da lei de Deus? | |
| – | O mal pode ser necessário (por causa das circunstâncias), mas o mal não deixa de ser o mal. Entretanto, a necessidade do mal (por causa das circunstâncias) desaparece conforme a alma se depura (evolui espiritualmente), passando sucessivamente de uma existência (física) para outra. Então, um homem que já tenha um progresso espiritual maior será mais culpado se aquele homem praticar o mal, pois o homem com um maior progresso espiritual compreende melhor o (que seja) mal. |
639. | Não pode acontecer (com frequência) que o mal que um homem pratica seja resultado da posição em que outros homens colocaram aquele homem? [9] Neste caso, quem são os mais culpados? | |
| – | A responsabilidade pelo mal é sempre de quem causou o mal. Neste caso, um homem que seja levado a praticar o mal – por causa da posição em que aquele homem tenha sido colocado pelos seus semelhantes – tem menos culpa do que aqueles outros homens que ocasionaram (provocaram) a prática daquele mal. Cada pessoa será punida (irá sofrer as consequências) não só pelo mal que a pessoa tenha praticado mas também pelo mal que a pessoa tenha provocado. |
640. | Se uma pessoa não praticou um certo ato mal, mas se aproveitou (levou vantagem) daquele ato mal praticado por outra pessoa, a pessoa que se aproveitou daquele ato mal é tão culpada quanto a pessoa que – de fato – tenha praticado aquele ato mal? [10] | |
| – | Uma pessoa que se aproveita (leva vantagem) de um ato mal praticado por outro alguém é tão culpado como se tivesse (ela própria) praticado aquele ato mal. Se aproveitar do mal é a mesma coisa que participar do mal.
Talvez a pessoa que se aproveita de um ato mal não fosse capaz de praticar aquele ato mal. Mas uma vez que o ato mal já foi praticado por alguém, a pessoa que tira proveito daquele ato mal praticado está aprovando aquele ato mal. Isso significa que aquela pessoa teria ela própria praticado aquele ato mal se a pessoa pudesse, ou se pessoa tivesse coragem de praticar aquele ato mal. |
641. | Desejar o mal é tão repreensível (condenável) quanto praticar o mal? | |
| – | Depende.
Existe virtude quando o homem – de livre vontade – resiste ao mal que o homem deseja praticar [11], principalmente se existe uma possibilidade (chance) para o homem satisfazer aquele desejo (do mal).
Se o homem não pratica o mal – que o homem está desejando – apenas por causa da falta de ocasião (oportunidade) para praticar o mal, então o homem é culpado por desejar o mal. |
642. | Para agradar a Deus, e para garantir a sua posição (espiritual) futura, basta que o homem não pratique o mal? | |
| – | Não. É necessário que o homem faça o bem até o limite de suas forças [12], pois o homem terá que responder por todo o mal que seja um resultado do bem que o homem tenha deixado de praticar. |
643. | Pode acontecer que exista alguém que não tenha possibilidade de fazer o bem por causa da posição (condição) em que aquele alguém está? | |
| – | Não há quem não possa fazer o bem [13]. Apenas a pessoa egoísta nunca encontra ensejo (oportunidade) de praticar o bem.
Basta que uma pessoa esteja se relacionando com outros homens para que existam ocasiões para aquela pessoa praticar o bem. Não existe um dia da existência (física) que não apresente uma oportunidade para praticar o bem (para quem não está cego pelo egoísmo).
Para o homem, fazer o bem não significa apenas ser beneficente (generoso materialmente), mas significa (também) ser útil (para os semelhantes) na medida do possível em todas as vezes que a participação do homem (sendo útil) seja necessária. |
644. | O meio (social) onde certos homens estão colocados não representa a causa principal de muitos vícios e crimes daqueles homens? | |
| – | Sim. Mas, apesar disso, nesse caso existe uma prova (lição) que o próprio Espírito escolheu quando o Espírito (desencarnado) foi levado pelo desejo de nascer naquele meio e ficar exposto às tentações para ter o mérito da resistência àqueles vícios e crimes. |
645. | Quando um homem está de certo modo mergulhado em uma atmosfera de vício, o mal não se torna um arrastamento (tentação) quase irresistível para aquele homem? | |
| – | Arrastamento (tentação), sim. Irresistível, não, pois mesmo dentro de uma atmosfera de vício podem ser encontradas grandes virtudes entre os Espíritos (encarnados naquela atmosfera) que tiveram força para resistir e que – ao mesmo tempo – lá estão porque receberam a missão de exercer uma boa influência sobre os seus semelhantes. |
646. | O mérito de um bem que tenha sido praticado depende de determinadas condições? Dizendo de outra forma, o mérito que resulta da prática do bem tem diferentes graus? | |
| – | O mérito do bem está na dificuldade que existe para praticar o bem. Não existe nenhum merecimento em praticar o bem sem esforço, e quando a prática do bem não custa nada. Deus tem em melhor conta o pobre que divide seu único pedaço de pão com outro pobre, do que tem em conta o rico que dá apenas o que está sobrando – assim disse Jesus sobre o óbolo (dízimo) da viúva. [14] |
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[1] Fazer para os outros aquilo que gostaríamos que os outros fizessem para nós, e não fazer para outros aquilo que não gostaríamos que os outro fizessem para nós.
[3] Ver questão 119. O texto original do "Livro dos Espíritos" diz: "Eis por que há união do Espírito ao corpo". A palavra "também" foi incluída (sem alteração de sentido) para deixar claro e lembrar que a experiência de distinguir o bem do mal não é a única razão para a união do Espírito com o corpo físico. Em algumas questões anteriores do "Livro dos Espíritos", os Espíritos superiores já deixaram claro que a união do Espírito com o corpo físico tem vários propósitos – por exemplo, ver questões 25, 87, 132, 166 a 170, 271, 573, e 584. Como o assunto já havia sido deixado claro o bastante pelos Espíritos superiores, a palavra "também" foi usada pelo Espírito superiores no texto original.
[4] Essa pergunta de Allan Kardec já estava praticamente e indiretamente respondida na questão 632: "Jesus disse: 'vede o que quereríeis que vos fizessem ou não vos fizessem'. Isso resume tudo. Não há forma como o homem possa se enganar (se o homem seguir essa regra)".
[5] Por exemplo, de forma geral "assassinar" é um mal. Mas "assassinar" é um mal apenas para o homem comum, ou "assassinar" deixa de ser um mal quanto o ato de matar é praticado por um soldado que está defendendo sua pátria?
[6] Há atenuantes para as consequências (castigo) do mal que um homem venha a praticar, dependendo da intenção do homem que pratica o mal (ver questão 637). O mal praticado pelo homem não deixou de ser um mal, mas outras condições e circunstâncias são levadas em conta para avaliar (pesar) aquele mal que foi praticado. Por exemplo, ver questão 358 e 359 sobre "aborto".
[7] Por exemplo, "matar o semelhante" é um mal, mas em uma guerra o ato de "matar o semelhante" acaba sendo uma consequência das circunstâncias (guerra).
[8] Além do caso das guerras, há ainda a necessidade de "auto defesa" que muitas vezes leva o homem a matar o seu semelhante.
[9] Novamente a guerra pode usada com um exemplo disso. Quando há uma guerra, muito homens são convocados (muitas vezes contra a própria vontade) como soldados para combater na guerra, sob a ameaça de punições severas caso o homem se recuse a participar da guerra como soldado. Na guerra, aquele homem irá obrigatoriamente acabar matando o seu semelhante (na figura do inimigo).
A parte inicial dessa pergunta não faz muito sentido porque é quase uma repetição da questão anterior, já que a posição social em que alguém seja colocado por outros homens também faz parte daquilo que foi chamado "força das coisas".
[10] Um exemplo bastante simples disso ocorre com "mercadorias roubadas". Quem compra uma mercadoria roubada, sabendo que é mercadoria roubada, é tão culpado quanto o ladrão. A lógica para a culpa do comprador é simples: se ninguém comprasse mercadorias roubadas, não haveria comércio de mercadorias roubadas.
[11] Não existe virtude quando o homem deixa de praticar o mal apenas porque as oportunidades para a prática do mal não surgiram, ou quando o homem (por exemplo) tem apenas receio de praticar o mal porque pode ser descoberto. Nestes casos, não existe de fato "resistência ao mal".
[12] No caso, a expressão "limite de suas forças" significa até o limite do alcance das capacidades que o homem possui. Por exemplo, um homem inteligente deve colocar a sua inteligência a serviço do bem até onde a sua inteligência permita. A expressão "limite de suas forças" é figurada e não quer dizer "forças físicas".
[13] Até certo ponto essa afirmação deve ser vista como "força de expressão". Uma pessoa que esteja amarrada em coma – ou em estado vegetativo – em uma cama de hospital dificilmente teria condições de realizar o bem (pelo menos na matéria).
[14] Marcos, XII: 41-44 – Lucas, XXI: 1-4 – "E estando Jesus assentado defronte donde era o gazofilácio, observava ele de que modo deitava o povo ali o dinheiro; e muitos, que eram ricos, deitavam com mão larga. E tendo chegado uma pobre viúva, lançou duas pequenas moedas, que importavam um real. E convocando seus discípulos, lhes disse: Na verdade vos digo, que mais deitou esta pobre viúva do que todos os outros que deitaram no gazofilácio. Porque todos os outros deitaram do que tinham na sua abundância; porém esta deitou da sua mesma indulgência tudo o que tinha, e tudo o que lhe restava para seu sustento".
GAZOFILÁCIO: caixa ou cofre onde se recolhiam as oferendas para o culto.
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