Parte II: O mundo espírita – Capítulo V: Considerações sobre as múltiplas existências

Livro dos Espíritos: linguagem simplificada - Considerações sobre as múltiplas existências

 

Considerações sobre as múltiplas existências

 

222.

Algumas pessoas dizem que o dogma (crença que não pode ser questionada) da reencarnação não é novo; o dogma da reencarnação reapareceu na doutrina de Pitágoras [1]. Nunca dissemos que a doutrina espírita seria uma invenção moderna. Como o Espiritismo é uma lei da natureza, o Espiritismo deve ter existido desde o começo dos tempos, e sempre nos esforçamos para demonstrar que na antiguidade mais remota são descobertos sinais da presença do Espiritismo.

 

Pitágoras, como se sabe, não foi o criador do sistema da metempsicose [2]. Pitágoras foi buscar o sistema da metempsicose entre os filósofos indianos e entre os egípcios. Os indianos e os egípcios tinham o sistema da metempsicose há muito tempo desde a antiguidade. A idéia da transmigração [3] das almas era, portanto, uma crença disseminada (comum), aceita pelos homens mais eminentes (daquela época). De onde os homens daquela época retiraram a crença da transmigração das almas? Seria através de uma revelação, ou seria através da intuição? A resposta para essa pergunta é desconhecida. Contudo, seja como for, sem dúvida a idéia da transmigração das almas deve ter alguma coisa séria pois a idéia da transmigração das almas atravessou séculos e séculos e conseguiu um lugar entre as inteligências de alto vulto. Assim, a antiguidade da doutrina das múltiplas existências é uma prova a seu favor, e não um argumento para objeção (à doutrina das múltiplas existências).

 

Mas entre o sistema da metempsicose dos povos antigos e a moderna doutrina da reencarnação há (como é conhecido) uma diferença profunda já que os Espíritos (superiores) rejeitam completa e absolutamente a transmigração da alma do homem para os animais e vice-e-versa.

 

Portanto, ensinando o dogma das múltiplas existências corporais, os Espíritos (superiores) renovam uma doutrina que teve origem nas primeiras idades do mundo; uma doutrina que se conservou até os nossos dias no íntimo de muitas pessoas. Os Espíritos (superiores) apresentam a doutrina da reencarnação de um ponto de vista mais racional e que está mais de acordo com as leis (de progresso) da natureza, que está mais em harmonia com a sabedoria do Criador, e que está livre de todas as influências da superstição. Um fato que vale ser observado é que os Espíritos (superiores) ensinaram a doutrina da reencarnação ao longo dos últimos tempos, e não apenas neste livro. Antes mesmo da publicação deste livro vinham acontecendo em vários países muitas comunicações da mesma natureza (vindas dos Espíritos), e depois as comunicações aumentaram muito. Talvez fosse aqui o caso de examinarmos por que os Espíritos não parecem todos de acordo sobre esta questão [4]. Mais tarde, porém, voltaremos a este assunto.

 

-----------------------------

 

Vamos deixar de lado, por enquanto, a possibilidade de qualquer influência ou intervenção dos Espíritos (neste assunto), e vamos examinar a matéria de um outro ponto de vista. Vamos supor que esta teoria (da reencarnação) não tem nada a ver com os Espíritos, e vamos supor que jamais a idéia de "Espíritos" tenha surgido. Vamos ficar em um terreno neutro, concordando com o mesmo grau de possibilidade para as duas hipóteses: uma única existência corporal, ou várias existências corporais. Então, veremos para que lado a razão (raciocínio) e o nosso próprio interesse nos levarão.

 

A idéia da reencarnação é rejeitada por certas pessoas apenas porque a idéia da reencarnação não é conveniente para aquelas pessoas. Essas pessoas dizem que uma existência corporal já é o bastante e já basta, e que não precisariam recomeçar outra existência corporal igual. Algumas dessas pessoas ficam furiosas com o pensamento de que tenham que voltar à Terra. Deveríamos perguntar a essas pessoas se elas pensam que Deus pediu a opinião delas, ou levou em conta as preferências delas, quando Deus criou as leis que regulam o universo.

 

De duas, uma: ou a reencarnação existe, ou não existe. Se a reencarnação existe, não faz a menor diferença se a idéia da reencarnação contraria aquelas pessoas. Aquelas pessoas terão que passar pela reencarnação do mesmo jeito, sem que Deus tenha que pedir permissão para aquelas pessoas. Aquelas pessoas parecem um doente que diz "sofri bastante hoje, amanhã não quero sofrer mais". Qualquer que seja o mau humor daquelas pessoas, não será por isso que irão sofrer menos no dia seguinte, nem em todos os dias depois do dia seguinte (até que a cura chegue). Daí, se as pessoas que pensam assim tiverem que viver (na Terra ou em outro mundo) de novo, elas irão reencarnar e irão viver novamente (na Terra ou em outro mundo) quer queiram, quer não queiram. Não adianta nada para aquelas pessoas se revoltarem como se fossem crianças que não querem ir para a escola, ou como se fossem condenados que não querem ir para prisão. Aquelas pessoas irão passar pelo que elas tem que passar. Então, esse tipo de objeção (revolta e rebeldia contra a idéia da reencarnação) é infantil demais e não merece um exame mais sério. Mesmo assim diremos para as pessoas que pensam assim que elas podem ficar tranquilas porque a doutrina da reencarnação não é tão terrível como elas pensam. Diremos para as pessoas que pensam assim que elas não estariam tão aterrorizadas se elas tivessem estudado a doutrina espírita a fundo: essas pessoas – então – saberiam que as condições das novas existências corporais só dependem delas mesmas, e que as novas existências corporais que aquelas pessoas terão serão felizes ou infelizes conforme as coisas que elas mesmas tiverem feito neste mundo (físico). Aquelas pessoas – então – saberiam que poderiam começar agora mesmo a se elevar tão alto (moralmente) que não teriam mais medo de tornar a cair na lama (do erro).

 

-----------------------------

 

De agora em diante estamos supondo que estamos falando com pessoas que acreditam em um futuro depois da morte (física); não estamos mais falando com quem cria para si mesmo a perspectiva do nada (depois da morte física); não estamos mais falando com pessoas que acham que suas almas irão (depois da morte física) se afogar dentro de um todo universal onde perderão as suas individualidades (como os pingos de chuva que caem em um oceano). Tanto a idéia no nada (depois da morte física) quanto a idéia da volta para um todo universal são quase a mesma coisa.

 

Ora, pois: se existe a crença em um futuro qualquer (depois da morte física), então é certo que não pode existir a crença de que aquele futuro será o mesmo para todos, pois se o futuro fosse igual para todos, então qual seria a utilidade da prática do bem? Se não houvesse utilidade na prática do bem, por que o homem iria dominar seus impulsos? Por que o homem deixaria de satisfazer a todas as suas paixões, a todos os seus desejos, mesmo que a custa de outras pessoas já que se o homem não se tornaria nem melhor, e nem pior por causa disso (satisfações mundanas)?

 

Então, ao contrário, quem acredita em um futuro qualquer (depois da morte física) acredita (também) que aquele futuro será mais, ou menos feliz (infeliz) de acordo com os atos praticados durante a vida (física). Quem pensa assim deseja que aquele futuro seja tão afortunado (feliz) quanto seja possível já que aquele futuro deverá durar por toda a eternidade, não é mesmo?

 

Mas por acaso teria cabimento se quem pensa assim também visse a si próprio como um dos homens mais perfeitos que tenham existido na Terra e – portanto – com o direito de alcançar de uma vez só a felicidade suprema dos eleitos? Claro que não teria cabimento.

 

Então deve ser reconhecido que há homens de maior valor e com direito a um lugar melhor (no futuro depois da morte física), sem que isso signifique que as outras pessoas estão entre os marginais. Se alguém se imaginar (corretamente) por um instante em uma posição intermediária entre os marginais da sociedade e os homens de maior valor da sociedade, e se esse alguém imaginar que lhe seja dito "você sofre e você não é tão feliz quanto poderia ser, ao passo que diante de você há pessoas que gozam de uma felicidade completa; você quer trocar de lugar com aquelas pessoas?". Com certeza a resposta seria: "o que preciso fazer?". Bem, não é preciso fazer quase nada, é preciso apenas recomeçar o trabalho mal executado e executar melhor aquele trabalho. Alguém iria ficar indeciso para aceitar o recomeço dos trabalhos, mesmo que com o preço de muitas existências (físicas) de provações?

 

Vamos fazer outra comparação mais simples e mundana. Vamos imaginar um homem que não é extremamente miserável, mas que mesmo assim sofre privações por causa da falta de recursos. Vamos imaginar que alguém dissesse para esse homem: "aqui está uma riqueza imensa que você pode usar, mas para isso é preciso que você trabalhe duro por um minuto". Mesmo que aquele homem fosse o homem mais preguiçoso do mundo, aquele homem diria "vamos trabalhar um minuto, dois minutos, uma hora, um dia se for preciso; isso importa se eu puder acabar os meus dias na fartura?" Ora, o que é a duração da vida corpórea comparada com a eternidade? Em comparação com a eternidade, a duração da vida corpórea é menos do que um minuto, menos do que um segundo.

 

-----------------------------

 

Temos visto algumas pessoas raciocinando deste modo: "Deus é soberanamente bom e não é possível que Deus obrigue o homem a recomeçar uma série de misérias e tribulações". Então Deus seria mais bondoso se Ele condenasse o homem a sofrer por toda a eternidade por causa de alguns momentos de erro na vida? Ou Deus seria mais bondoso se Ele desse ao homem os meios que o homem precisa para corrigir suas faltas?

 

Dois industriais contrataram (cada um) um operário. Cada um daqueles operários tinha a chance de se tornar um sócio do patrão. Aconteceu certa vez que os operários usaram muito mal o dia de trabalho e mereceram ser despedidos. Um dos industriais mandou o operário embora sem ouvir às súplicas do funcionário que – sem conseguir achar outro trabalho – morreu na miséria. O outro industrial disse para o seu operário: "você perdeu um dia de trabalho e por isso você me deve uma compensação. Você executou o seu trabalho mal e está me devendo uma reparação. Vou permitir que você recomece o seu trabalho mal executado, e trate de executar bem o trabalho porque assim você ficará com o seu emprego e você poderá continuar a pensar em alcançar a posição de sócio que foi prometida para você".

 

É preciso perguntar qual dos dois industriais foi mais humano? Seria possível que Deus, que é a compaixão suprema, seja mais intolerante do que um homem?

 

É dolorosa a idéia de que nossa sorte (após a morte física) seja decidida para sempre por consequência de alguns anos de provações, ainda que alcançar a perfeição não tenha dependido (inteiramente) de nós. A idéia contrária à essa idéia dolorosa é muito mais consoladora pois a idéia contrária nos dá esperanças. Assim, sem tomar o lado das múltiplas existências corpóreas ou o lado oposto, e sem preferir qualquer uma daquelas hipóteses, podemos dizer que se o homem pudesse escolher, o homem não iria querer um julgamento sem apelação.

 

Um filósofo disse certa vez que se Deus não existisse, o homem iria precisar inventar Deus para a felicidade da raça humana. A mesma coisa pode ser dita sobre as múltiplas existências corpóreas. Mas conforme já dissemos há pouco, Deus não pede nossa permissão, nem leva em conta as nossas preferências. Ou isto é, ou isto não é. Vamos examinar de que lado as probabilidades estão, encarando o assunto (múltiplas existências corpóreas) de outro ponto de vista, apenas como estudo filosófico, e ainda sem levar em conta o ensino dos Espíritos (superiores).

 

-----------------------------

 

Evidentemente, se não há reencarnação então só há uma existência corporal. Se a nossa existência corpórea atual é única, então a alma do homem foi criada quando o homem nasceu, a menos que seja admitido que a alma existia antes (do nascimento do homem), e – neste caso – cabe perguntar o que a alma era antes do nascimento, e cabe perguntar se o estado da alma antes do nascimento é uma espécie de existência com uma forma qualquer (não física).

 

Não existe meio termo: ou a alma existia antes do corpo, ou a alma não existia antes do corpo físico. Se a alma existia antes do corpo físico, qual era a situação da alma? Antes do corpo físico, a alma tinha ou não tinha consciência de si mesma? Se a alma não tinha consciência de si mesma antes do corpo físico, então isso é quase como se a alma não existisse (antes do corpo físico). Se alma tinha uma individualidade (personalidade) antes do corpo físico, a individualidade da alma progredia ou ficava para sempre em um mesmo estado? Em qualquer um desses casos (progresso da alma, ou não), em que grau (de progresso) a alma chega ao corpo físico (no momento do nascimento)?

 

Supondo, de acordo com a crença comum, que a alma nasce com o corpo, ou que a alma só tem qualidades negativas quando a alma encarna (ter apenas qualidades negativas é a mesma coisa que a alma nascer com o corpo físico), então perguntamos:

 

1)       Por que a alma mostra (durante a vida física) talentos tão diferentes e independentes das idéias que a alma pudesse ter conseguido pela educação?

 

2)       Muitas crianças muito novas revelam um talento extraordinário para uma ou outra arte, ou para uma ou outra ciência; de onde vem esse talento? E por que outras crianças permanecem inferiores ou medíocres durante a vida toda?

 

3)       De onde vem as idéias intuitivas ou inatas de algumas pessoas (idéias que não existem nas outras pessoas)?

 

4)       Algumas crianças tem um instinto precoce, ou sentimentos, que vão contra o que existe no meio em que elas nasceram. Por exemplo, instintos precoces para os vícios, ou para as virtudes, ou sentimentos inatos de dignidade, ou de baixeza. De onde vem aquele instinto precoce e aqueles sentimentos inatos?

 

5)       Sem levar em conta a educação (instrução), por que alguns homens são mais adiantados do que os outros?

 

6)       Por que há homens selvagens e homens civilizados? Se o filho recém nascido de um indígena selvagem for educado nos melhores colégios, aquele menino será algum dia um cientista como Laplace ou Newton?

 

Qual filosofia ou teologia (religião) é capaz de responder a todas essas perguntas e esclarecer todos esses assuntos?

 

Não há dúvida que de duas, uma: ou as almas são iguais quando nascem, ou as almas não são iguais quando nascem. Se as almas são iguais quando nascem, por que as almas tem entre elas uma diferença tão grande de talentos? Poderia ser dito que essa diferença de talentos depende do corpo físico. Mas – então – estaríamos diante de uma das doutrinas mais monstruosas e imorais. O homem seria uma simples máquina, um brinquedo da matéria. O homem deixaria de ter responsabilidade pelos seus atos porque o homem poderia dizer que todos os seus atos (maus) foram causados por imperfeições físicas. Se as almas não são iguais entre si, é porque Deus criou as almas dessa forma. Neste caso, porém, qual é o motivo da superioridade inata concedida para algumas almas? Essa desigualdade entre as almas corresponde à justiça de Deus e ao amor que Deus tem igualmente por todas as suas criaturas?

 

-----------------------------

 

Em relação à sexta pergunta acima (sobre o filho recém nascido de um indígena selvagem), algumas pessoas naturalmente irão dizer que o filho de um indígena é de uma raça inferior. Então cabe perguntar se um indígena deixa de ser um homem. Se um indígena é um homem, por que Deus não deu ao indígena os mesmos privilégios que Deus deu aos homens de outras raças? Se um indígena não é um homem, por que existem as tentativas de tornar cristãos aqueles indígenas? A doutrina espírita é bem mais ampla do que tudo isto. Segundo a doutrina espírita, não há muitas espécies de homens (por exemplo, homens indígenas e homens civilizados), há apenas Espíritos (encarnados como homens) que estão mais ou menos atrasados, mas todos com possibilidades e destinados ao progresso. Este princípio não está mais de acordo com a justiça de Deus?

 

-----------------------------

 

Se, ao contrário, concordarmos com a idéia de que uma alma tem uma série de existências físicas anteriores e progressivas, tudo fica explicado. Quando os homens nascem, os homens trazem a intuição de tudo que aprenderam antes: os homens são mais ou menos adiantados conforme a quantidade de existências físicas anteriores que já tiveram, e conforme estejam mais ou menos afastados do ponto de onde começaram seu progresso. A mesma coisa acontece em uma reunião de pessoas de várias idades, onde cada pessoa tem (a princípio) um desenvolvimento proporcional ao número de anos vivido. As existências corpóreas são para a vida da alma o que os anos vividos são para a vida do corpo físico.

 

Imaginemos uma situação onde mil pessoas estão reunidas, com idades variando de um ano a oitenta anos. Vamos supor que exista um véu encobrindo todos os dias anteriores ao dia em que aquelas mil pessoas foram reunidas, e – daí – também deve ser suposto que todas aquelas pessoas nasceram na mesma ocasião. Naturalmente irão surgir perguntas:

 

Por que algumas daquelas pessoas são tão grandes e algumas daquelas pessoas são tão pequenas?

Por que algumas daquelas pessoas são tão novas e algumas daquelas pessoas são tão velhas?

Por que algumas daquelas pessoas são tão instruídas e algumas daquelas pessoas são tão ignorantes?

 

Mas se aquele véu for retirado revelando o passado, então será possível descobrir que algumas daquelas pessoas viveram mais tempo e algumas daquelas pessoas viveram menos tempo, e tudo estará explicado.

 

Deus, em sua justiça, não pode ter criado almas desiguais, onde algumas almas são criadas perfeitas. Com as múltiplas existências corpóreas, a desigualdade que é observada entre as almas não se choca mais de frente com a mais rigorosa equidade (igualdade): é que vemos apenas o presente, não vemos o passado. Esse raciocínio, essa forma de pensar, está baseado em algum sistema, está baseado em alguma suposição gratuita? Não está.

 

Nosso ponto de partida (neste raciocínio para examinar o assunto) é um fato óbvio: a desigualdade dos talentos, a desigualdade do desenvolvimento intelectual, a desigualdade do desenvolvimento moral (que existe entre as pessoas).

 

Também pudemos ver que nenhuma das (outras) teorias que existem por aí consegue explicar aquelas desigualdades, ao passo que uma outra teoria (da reencarnação) fornece uma explicação simples, natural, e lógica. Faz sentido preferir uma daquelas teorias que não explicam as desigualdades (das almas) ao invés de preferir uma das teorias que podem explicar as desigualdades (das almas)?

 

-----------------------------

 

Acabamos de examinar a alma com relação ao passado da alma e com relação ao momento presente da alma. Se examinamos a alma com relação ao futuro da alma, encontramos as mesma dificuldades:

 

1)       Se a nossa existência corpórea atual, e apenas ela, irá decidir nossa sorte após a morte física, então qual será a sorte na vida futura do selvagem, e qual será a sorte na vida futura do homem civilizado? Na vida futura após a morte física, o selvagem e o homem civilizado terão a mesma sorte ou estarão distantes no que diz respeito à soma de felicidade que cada um terá?

 

2)       Alguém que tenha trabalhado durante toda a vida para se melhorar (intelectualmente e moralmente) será (na vida futura) da mesma categoria de uma outra pessoa que permaneceu durante sua vida em um grau inferior de adiantamento (não por própria culpa, mas porque não teve tempo e nem possibilidades de se melhorar)?

 

3)       Uma pessoa que tenha praticado o mal em sua existência corpórea, porque não teve oportunidades para se instruir (no bem), será culpada de um estado de coisas que não dependeu dela mesma?

 

4)       Existe um trabalho contínuo [5] para esclarecer, moralizar, e civilizar os homens. Mas, se de um lado existe um homem que fica esclarecido (e progride), de outro lado existem milhões de outros homens que morrem todos os dias antes que a luz (do esclarecimento) tenha chegado até eles. Que sorte esses milhões de homens terão após a morte física? Esses milhões de homens serão tratados como marginais (na vida futura)? Se esses milhões de homens não serão tratados como marginais (na vida futura), o que eles fizeram para (merecer) ocupar a mesma categoria (espiritual) que é ocupada pelos homens que se esclareceram?

 

5)       Qual é a sorte dos homens (seres humanos) que morrem na infância, quando ainda não puderam fazer o bem, e quando ainda não puderam fazer o mal? Se os seres humanos que morrem na infância vão para o meio dos eleitos, por que aqueles seres humanos recebem o favor de ir para o meio dos eleitos se aqueles seres humanos não fizeram nada para merecer o favor? Qual é o privilégio que permite que aqueles seres humanos estejam livres das tribulações e dificuldades da vida?

 

Existe alguma doutrina que seja capaz de responder a essas perguntas, que seja capaz de resolver esses problemas? Se a idéia das existências corpóreas consecutivas for aceita, tudo ficará explicado de acordo com a justiça de Deus. O que não pode ser feito em uma existência física, poderá ser feito em outra existência corpórea (futura). Dessa forma ninguém escapa da lei do progresso, ninguém escapa da lei que dita que cada um será recompensado de acordo com seu merecimento real, e ninguém será excluído da felicidade suprema (que todos podem desejar) seja lá qual for os obstáculos que apareçam no caminho.

 

A quantidade de questões parecidas com estas poderia facilmente chegar ao infinito pois são muitos os problemas psicológicos e morais que só tem solução na idéia das múltiplas existências físicas. Mantivemos apenas as questões de ordem mais geral.

 

-----------------------------

 

Seja como for, poderia ser dito que a Igreja não admite a doutrina da reencarnação, e – portanto – a doutrina da reencarnação corrompe a religião. Não é nosso objetivo tratar desta questão (objeção) neste momento. Por ora basta a demonstração (já feita) de que a doutrina da reencarnação é evidentemente moral e racional. Ora, o que é moral e racional não pode estar indo contra uma religião que diz que Deus é a bondade e a razão (inteligência) suprema.

 

Houve uma época em que a Igreja Católica não aceitava a evidência científica do movimento da Terra em torno do Sol [6], e não aceitava a visão científica sobre os seis dias da criação (da Terra). Se a Igreja Católica tivesse ido contra a opinião de todos e tivesse ido contra aquelas evidências científicas, teimando em não aceitar aquelas evidências científicas, e por isso tivesse expulsado os fiéis que não aceitassem aqueles dogmas (crenças inquestionáveis) da Igreja, qual teria sido o fim da Igreja Católica? Se uma religião obrigasse seus seguidores a aceitarem (como artigos de fé) erros óbvios, qual seria o crédito e a autoridade que aquela religião iria merecer entre as pessoas cultas e esclarecidas? Mas logo que aquelas evidências científicas se tornaram bem estabelecidas, a Igreja Católica agiu com prudência e se colocou ao lado das evidências científicas.

 

Uma vez que esteja provado que certas coisas são impossíveis sem a doutrina da reencarnação, e uma vez que esteja provado que alguns pontos do dogma religioso não podem ser explicados a não ser através da doutrina da reencarnação, será necessário (para a religião) aceitar a doutrina da reencarnação, e será necessário (para a religião) reconhecer que os desentendimentos entre a doutrina da reencarnação e os dogmas religiosos são apenas desentendimentos aparentes.

 

Mais adiante iremos mostrar que a distância entre a religião e a doutrina das vidas sucessivas (reencarnação) talvez seja muito menor do que se pensa, e iremos mostrar que a doutrina da reencarnação não causaria um prejuízo maior para a religião do que o (possível) prejuízo causado para a religião pela aceitação das descobertas sobre o movimento da Terra (em torno do Sol), ou a aceitação das descobertas sobre os períodos geológicos de formação da Terra (descobertas que à primeira vista parecem desmentir os textos sagrados). Além disso, a presença do princípio da reencarnação está visível em muitas passagens das Escrituras, e pode ser encontrado muito bem formulado de forma clara no Evangelho:

 

"Quando desciam da montanha (depois da transfiguração), Jesus lhes fez esta recomendação: Não faleis a ninguém do que acabastes de ver, até que o filho do homem tenha ressuscitado dentre os mortos. Perguntaram-lhe então seus discípulos: Por que dizem os escribas ser preciso que primeiro venha Elias? Respondeu-lhes Jesus: É certo que Elias há de vir e que restabelecerá todas as coisas. Mas, eu vos declaro que Elias já veio, e eles não o conheceram e o fizeram sofrer como entenderam. Do mesmo modo darão a morte ao filho do homem. Compreenderam então seus discípulos que era de João Batista que ele lhes falava." (São Mateus, cap. XVII.)

 

Então, João Batista havia sido Elias, e houve a reencarnação do Espírito (ou da alma) de Elias no corpo de João Batista.

 

Não importa se nós temos uma opinião sobre a reencarnação, ou se nós aceitamos a reencarnação, ou se nós rejeitamos a reencarnação, pois nada disso será um motivo para que nós estejamos livres de passar pela reencarnação (desde que ela exista), independente de todas as crenças em contrário à reencarnação. O essencial é que o ensino dos Espíritos (superiores) chama nossa atenção por ser um ensino cristão; o ensino dos Espíritos (superiores) se apoia na imortalidade da alma, se apoia nas penas e recompensas futuras, se apoia na justiça de Deus, se apoia no livre-arbítrio do homem, e se apoia na moral do Cristo. Portanto, o ensino dos Espíritos (superiores) não é anti religioso.

 

-----------------------------

 

Para certas pessoas o ensinamento espírita não tem qualquer autoridade (validade), e temos raciocinado sem levar em conta qualquer ensinamento espírita. Se somos (como tantos outros) a favor da idéia das múltiplas existências físicas, não é apenas porque aquela idéia veio dos Espíritos (superiores). Somos a favor a favor da idéia das múltiplas existências físicas porque aquela idéia nos parece ser a idéia mais lógica, e porque só aquela idéia resolve questões até então sem solução.

 

Mesmo que a idéia das múltiplas existências físicas tivesse sido criada por um simples mortal, ainda assim seríamos a favor daquela idéia, sem ter um segundo sequer de indecisão para renunciar às outras idéias que pudéssemos ter tido antes (e que fossem opostas à idéia das múltiplas existências físicas). Quando um erro (engano de forma de pensar) fica claro, o amor próprio perde muito mais do que ganha quando se teima em manter uma idéia falsa (errada).

 

A idéia das múltiplas existências físicas teria sido rejeitada também, mesmo que aquela idéia tivesse vindo de Espíritos (superiores), se aquela idéia parecesse ser contrária à razão (raciocínio), como já rejeitamos muitas outras idéias (vindas dos Espíritos) pois sabemos por experiência que nem tudo o que vem dos Espíritos deve ser aceito cegamente (da mesma forma que as idéias vindas dos homens não devem ser aceitas cegamente).

 

Ao nosso ver a idéia da reencarnação é lógica, antes de tudo, e a lógica da idéia da reencarnação é o que recomenda a aceitação daquela idéia. Mas a idéia da reencarnação tem outro mérito: a idéia da reencarnação confirma fatos positivos (sic [7]), e quase materiais por assim dizer. Os fatos confirmados pela idéia da reencarnação não permitem qualquer dúvida em uma pessoa que se dê ao trabalho de um estudo atento e racional para observar (com paciência e perseverança) aqueles fatos. Quando esses fatos confirmados pela idéia da reencarnação tiverem sido conhecidos por todas as pessoas (assim como aconteceu com os fatos sobre o movimento da Terra ao redor do Sol), todas as pessoas terão que obrigatoriamente aceitar as evidências, e quem for contra (as evidências e a idéia da reencarnação) vai se colocar em uma posição difícil quanto tiver que se desdizer.

 

-----------------------------

 

Para resumir, cabe reconhecer – portanto – que só a doutrina das múltiplas existências físicas explica o que permanece sem explicação sem aquela doutrina. Cabe reconhecer que a doutrina das múltiplas existências físicas é altamente consoladora e de acordo com a mais rigorosa justiça. Cabe reconhecer que a doutrina das múltiplas existências físicas fornece para o homem uma âncora de salvação que Deus, por misericórdia, concedeu para o homem.

 

As próprias palavras de Jesus não permitem dúvida a esse respeito. Eis o que está escrito no Evangelho de São João, capítulo III:

 

1)       Respondendo a Nicodemos, disse Jesus: Em verdade, em verdade, te digo que se um homem não nascer de novo não poderá ver o reino de Deus.

 

2)       Disse-lhe Nicodemos: Como pode um homem nascer já estando velho? Pode tornar ao ventre de sua mãe para nascer segunda vez?

 

3)       Respondeu Jesus: Em verdade, em verdade, te digo que se um homem não renascer da água e do espírito não poderá entrar no reino de Deus. O que é nascido da carne é carne e o que é nascido do espírito é espírito. Não te admires de que eu te tenha dito: é necessário que torneis a nascer. (Ver adiante o parágrafo "Ressurreição da carne", questão número 1010)

 


 

Anterior

 

Índice

 

Próximo

 



[1]        Pitágoras: foi um filósofo e matemático grego que viveu entre 570 A.C. e. 495 A.C.

[2]        Metempsicose: uma teoria que prega que espíritos possam encarnar em animais, e não apenas na espécie humana.

[3]        TRANSMIGRAÇÃO: ação de um povo que passa de uma região a outra. Por comparação, a ação de uma alma que passa de um corpo físico para outro corpo físico entre encarnações sucessivas.

[4]        Não está claro qual seria a questão a que Allan Kardec está se referindo. Seria a questão das múltiplas existências corporais? Se for, não faz sentido que os Espíritos não estejam todos de acordo sobre o assunto.

[5]        Um trabalho contínuo executado pelos Espíritos bons que estão constantemente tentando levar os homes para o bom caminho.

[6]        Por causa do texto de passagens bíblicas, a Igreja Católica defendeu durante mais do que 1.400 anos que a Terra seria o centro do sistema solar, com todos os planetas (do sistema solar) girando em torno da Terra.

[7]        Sic Erat Scriptum: traduzido como "assim estava escrito".

 

Comentários